"Abraço" é uma performance inspirada na série de tiras do cartunista brasileiro Laerte Coutinho "Dois homens que se abraçam". A performance consiste em um abraço filmado entre dois homens que dura uma hora, em espaço público. Além do questionamento do tempo sugerido pela imobilidade da imagem/gesto/ação, o "espectador"/transeunte se torna um dos objetos principais da performance. Como é possível uma desmonstração de afeto entre dois homens gerar tanta violência e revolta na sociedade contemporânea?A câmera atua como quadro e suporte registrando esse momento efêmero e as reações que ele causa, assim como amplia e multiplica a produção da performance a outros fenômenos: filme? exposição? projeto multi-mídia? livro? catálogo?
Performance: Biño Sauitzvy e Renato Linhares
Diretor de fotografia, video e foto: Mauro Pinheiro Jr
Camera/foto: Breno Cunha
Som: Caique Mello Rocha
Textos: Manoela Sawitzki
Rio de Janeiro, Brasil, maio 2012.
Abraço
substantivo masculino
1.ato de abraçar, de apertar entre os braços;
amplexo; envolver (algo ou alguém) com os braços,
mantendo-o junto ao peito; cingir com os braços.
2.Derivação: sentido figurado.
demonstração de afeto, de amizade.
3.Derivação: por metáfora.
junção ou união de coisas ou pessoas;
aderência, fusão; adotar; seguir.
4. Rubrica: arquitetura.
entrelaçamento de folhagens lavradas à volta de uma coluna
Dois homens se abraçam.
“Que viadagem!”
(“O abraço é quando duas ou mais pessoas – geralmente duas – ficam parcial ou completamente entre os braços da outra. É usado, dependendo da cultura local, como forma de demonstração de afeto de uma pessoa para outra. Através dele podemos cumprimentar ou expressar sentimentos como carinho, amor, compaixão, saudade, congratulação etc. Um abraço em alguém pode demonstrar também proteção instintiva.”)
Dois homens se abraçam em frente à Estação da Cinelândia, numa tarde de maio. Os carregadores da feira ao lado param o trabalho para assistir.
“Olha lá!”
“Vão casar, é?”
“Bichonas!”
Venta, chove e não chove. O outono em frente à Estação da Cinelância. Nos homens que se abraçam, são quatro. Faz frio, calor, é seco e úmido no abraço.
“O que é isso, um filme?”
“Mais ou menos.”
“Sobre o quê?”
“Um abraço.”
“Um abraço?!”
“É.”
“Só isso?”
“Só isso.”
Tropical e polar o entorno. Os minutos passam, o povo passa. Os olhos. Há quem fique e fixe as retinas num abraço entre homens. Alguém conta pasmado sobre o abraço ao telefone; dois amigos sussurram e riem entre si; uma mulher negra se volta e diz “Misericórdia”; um velho trôpego sacode a cabeça em desacordo. Há quem grite – e são muitos. O mundo enquanto dois homens se abraçam em frente à estação.
“Joga água que separa!”
(“O abraço consiste basicamente no envolvimento de uma pessoa nos braços da outra. É possível um abraço "completo", quando as duas pessoas se abraçam entre si ou um abraço unilateral, quando alguém permanece imóvel e a outra pessoa a abraça. Geralmente um abraço é dado pela frente de ambos, mas também pode ser dado de lado ou por trás. Entretanto, a expressão "abraço por trás" pode ter um sentido sexual mais forte. Um abraço pode ser coletivo e dado entre mais de uma pessoa ao mesmo tempo.”)
Dois homens se abraçam, e é o homem que se abraça. Pai e filho e irmão e amigo e macho e fêmea e criança e velho e amante e desconhecido. Desconhecidos amorosos abraçam dois homens que se abraçam em frente à Estação da Cinelândia.
“Olha ali que lindo! Eles tão se abraçando!”
“Moço, pode abraçar também?”
“Pode.”
Um mendigo se aproxima, coxeia, arrocha, se ri e xinga os dois homens com seu bafo alcóolico. Outros assistem e gargalham.
(“Recebendo visitantes chineses: dez erros a evitar:”
7. Não invadir a bolha da privacidade: (...) Para os chineses, a demonstração pública de afecto ainda continua a ser rara. (…) Evite abraços, palmadas nas costas e grandes efusões de alegria. Mantenha a distância e evite tocar no braço do seu interlocutor mesmo quando lhe tem de indicar o caminho.”)
“O que vocês vão fazer com isso? Vai passar onde?”
“Não sabemos.”
“Meu pai ensinou a nunca ter preconceito. Deus quer o amor. Tá faltando é amor nesse mundo.”
O pai que se foi e fica colado à pele, o filho que nunca se deixa de ser. O irmão que se é mesmo quando não há qualquer outro laço possível. O sangue que se agarra ao sangue. No medo, na perda, na dor, na alegria, no Réveillon, no aniversário, no encontro no aeroporto, na despedida. O abraço. Os corpos que se querem em silêncio. A pele, no abraço, diz.
(“É possível também abraçar objetos ou animais, como por exemplo uma árvore ou um pequeno cão. Algumas vezes, abraços entre amigos pode ser feito ou finalizado com uns tapinhas nas costas.”)
“Esse filme é sobre homofobia?”
“É sobre um abraço.”
“E eles são atores?”
“De certa forma, são.”
“Essa gente aí gritando, é uma hipocrisia.”
“Um abraço incomoda.”
“Eu sou homossexual e michê. Esses caras engravatados passando e fazendo cara feia aí, são os mesmos que deixam a mulher em casa e ligam pra mim. Se não pegam michê, pegam travesti.”
(“Dependendo da intensidade e forma como é expressado, um abraço pode fazer parte do relacionamento sexual dos seres humanos, despertando tanto no homem quanto na mulher, sinais de libido. Esse tipo de abraço pode acompanhar um beijo apaixonado. Apesar de incomum, pode-se dizer também que alguns animais podem abraçar. Uma gorila, por exemplo, pode abraçar seu filhote de forma muito parecida com o ser humano, uma gata pode cobrir seus filhotes com a pata para proteger, e pode ser interpretado por nós como um abraço.”)
O abraço antropofágico.
* quando se pretende uma despedida neutra, nenhum excesso constrangedor de intimidade, subscreve-se ao final do e-mail: “ab”. sempre que recebo esses abraços abreviados em duas letras penso que só abraço quem gosto, que sempre abraço forte quem amo. impessoais são os beijos abreviados que dou no rosto do estranho que alguém inadvertidamente me apresenta. cujo nome esqueço no minuto seguinte.
Abraço,
Manoela.
Foto: Mauro Pinheiro Jr